'Piercings' podem matar
Morte, cancro e até lesões cerebrais são alguns dos riscos que corre quem, apenas por questão estética, decide perfurar o corpo. As infecções são comuns e podem acabar mal.
Está de novo aberta a discussão em torno da perigosidade dos ‘piercings’. Uma jovem canadiana, de 17 anos, morreu vítima de choque tóxico na sequência de uma infecção num mamilo. Trata-se do segundo caso mortal registado no Mundo relacionado com a arte de perfurar o corpo (uma norte-americana morreu há dois anos devido a um ‘piercing’ na língua), mas as infecções são bem frequentes. Estudos internacionais calculam que um em cada dez jovens que recorre à colocação de ‘piercings’ tenha problemas graves de infecção. Quase sempre a ferida vira um ninho de bactérias. Sangramentos, pequenas infecções e inchaços ocorrem, por seu turno, em 30 por cento dos casos.
Os médicos dizem que os ‘piercings’ são portas abertas para a doença e que, em casos extremos, podem matar, provocar cancro e danos cerebrais. Os profissionais do ramo defendem a sua arte e explicam que tudo depende da higiene e do quadro clinico do cliente. A lei, entretanto, nada diz e há casas que continuam a operar de Norte a Sul do País sem quaisquer condições.
FERIDAS ABERTAS
Para o médico dermatologista Pinto Soares, o perigo é evidente. “No fundo estamos a falar de feridas. Quem faz um ‘piercing’ faz uma ferida na pele que não é mais do que uma porta de entrada para um sem número de bactérias”. Atrás delas vêm as infecções e, em casos extremos, as septicémias. “São infecções muito complicadas que vão para o sangue e que levam a pessoa a entrar em choque.”
Foi esta a causa do óbito da jovem canadiana, que deu entrada no hospital apenas duas semanas depois de ter feito um piercing.
Cláudio Oliveira, 42 anos, não chegou a recorrer ao hospital, nem sequer a um médico, mas durante um ano esteve a braços com infecções permanentes num sobrolho por causa de um ‘piercing’. “Algumas vezes senti-me muito desconfortável, sobretudo por causa do pus que saia da ferida. Acabei por tirá-lo. Disseram-me que não havia nada a fazer, que o corpo tinha rejeitado o brinco e que se não o tirasse ele iria acabar por cair sozinho.” E assim fez.
LESÕES CEREBRAIS
O médico Pinto Soares alerta ainda para o facto de determinadas zonas do corpo serem mais problemáticas. “As mucosas são zonas perigosas porque são húmidas e ricas em flora microbiana. A língua e os lábios, por exemplo, são altamente portadoras de bactérias e os riscos de infecções são altíssimos. Já os ‘piercings’ no nariz podem originar infecções graves, se forem directamente ao cérebro”.
Um problema fatal para a jovem norte-americana que, há dois anos, teve uma grave inflamação cerebral por causa de um ‘piercing’ na língua. A ressonância magnética revelou um abcesso cerebral, que obrigou a drenagem. Após análises, os médicos descobriram que estava contaminado com streptococcus viridians e outras bactérias comuns da boca.
ARREPENDIDOS
“As pessoas não imaginam os riscos que correm quando fazem este tipo de perfurações”, realça Orlando Monteiro da Silva, Bastonário da Ordem dos Dentistas. Frisa ainda a possibilidade, mais grave, de ocorrerem situações de cancro.
“Tudo o que é trauma contínuo pode, obviamente, causar cancro, sobretudo quando está associado a outros problemas como o consumo de álcool ou tabaco.”
Os problemas mais comuns associados a ‘piercings’ na zona da boca são inchaço da língua, dificuldades respiratórias, alteração da fala e do paladar ou quebra de dentes.
Finalmente ficam as cicatrizes, difíceis de sarar. “Este tipo de mutilações não faz sentido. Deixa cicatrizes para sempre.” E Pinto Soares garante que já atendeu vários casos de pessoas arrependidas.
EUROPA SEM LEI CONTROLA NÍQUEL
A actividade do ‘body piercing’ continua à espera de legislação, tanto em Portugal como na maior parte dos países europeus. A União Europeia, contudo, já começou a trabalhar no assunto, tendo no ano passado lançado uma directiva que transpõe para cada estado-membro limitações no que toca à colocação no mercado e à utilização de níquel nos ‘piercings’. Com a Directiva 2004/96/CE da Comissão, que em Portugal veio provocar alterações ao Decreto-Lei n.º 256/2000, pretende-se minorar os efeitos prejudiciais para a saúde humana e para o ambiente associados à utilização de níquel nos conjuntos de ‘piercing’. É a primeira resposta ao progresso científico e técnico entretanto alcançado nesta área. As avaliações do risco de sensibilização do homem ao níquel, realizadas pelo Comité Científico da Toxicidade, da Ecotoxicidade e do Ambiente (CCTEA), indicam ser mais apropriado fixar um limite de migração de níquel do que um limite do seu teor, como acontece na lei que se altera.
'MÉDICOS SÃO MUITO PRECONCEITUOSOS'
A Bad Bones, no Bairro Alto, em Lisboa, uma das mais populares casas de ‘piercings’ da capital, atende em média, por mês, entre 10 a 15 pessoas, que pedem ajuda por causa de ‘piercings’ mal feitos. “Chegam-me aqui coisas muito feias”, conta Natasha Fontinha, dizendo que os jovens fazem por fugir dos médicos e dos hospitais por receio de discriminação. “Ou vêm de casas que não têm condições ou de situações em que os ‘piercings’ foram feitos por curiosos ou amigos. Mas os médicos ainda são muito preconceituosos. Há dentistas que nem sequer atendem pacientes com ‘piercings’ na língua”. Situação idêntica ocorre na La Diabla, na Av. Duque de Loulé. “Em média chegam-nos aqui por mês 8 a 10 pessoas que problemas de infecções”, revela Filipa Borges. “Tudo tem a ver com a higiene e a qualidade do material. Há pessoas que ainda não sabem o perigo que correm quando procuram qualquer casa.”
Criar legislação é bem visto. “Iria acabar com os charlatães de uma vez por todas”, explica Natasha Fontinha. Quanto a morrer devido a um ‘piercing’, a responsável da Bad Bones considera tudo isto um disparate. “É preciso atender às condições em que o ‘piercing’ foi feito e ao quadro clínico da paciente. Provavelmente consumia drogas ou tinha alguma doença grave.” Natasha até já propôs “vários ‘workshops’ a médicos para lidar com estas situações”. Sem resposta.
COMEÇOU A DAR LEITE
Em 2002, uma jovem norte-americana que não estava grávida entrou em período de lactação por causa de um ‘piercing’ colocado num dos mamilos. O brinco terá estimulado os seios de tal forma que a jovem, de 20 anos, começou a produzir leite. Segundo relatos da altura, ela procurou o serviço de saúde três semanas após ter colocado o ‘piercing’, queixando-se de dores agudas e de uma estranha sensação de “descarga” nos seios.
Testes médicos realizados, a propósito, mostraram que o seu corpo estava a produzir altos níveis da hormona prolactina, associada à produção de leite. Posteriormente, médicos da Universidade de Boston explicaram o caso. “A lactação é estimulada pela sucção, o que quer dizer que se o ‘piercing’ for colocado em determinados pontos do mamilo, onde existem os chamados receptores, pode desencadear reflexos de produção do leite”.
A SABER
DECO FALHA NOTAS
Após a visita a 22 estabelecimentos no ano passado, a DECO constatou que muitos deles não autorizavam os clientes a visitar a sala de operações, quando o consumidor deve ter todo o direito a verificar as condições de higiene e segurança, antes de pagar pelo serviço.
METAIS SEGUROS
A jóia a utilizar na penetração da pele deverá ser de aço cirúrgico, titânio, nióbio ou ouro 14. O corpo rejeita com grande frequência outros tipos de metal.
ARREPENDIMENTO
Um estudo recente realizado no Brasil veio demonstrar que 61 por cento dos indivíduos (homens e mulheres) dos grandes centros culturais e urbanos, que fizeram tatuagens ou ‘piercings’, se arrependeram entre um a 12 anos mais tarde.
in: Correio da Manhã Online
28-03-2006
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